PARA NORMAIS
por Malu Mader

Foi como se tivessem colocado em meus ouvidos um aparelho de surdez. Simplesmente passei a ouvir o que meu marido pensava. Dizem por aí que toda regra tem sua exceção e sempre concordei com essa máxima, mas afirmo com certeza: ouvir pensamentos não é bom. Semana que vem completamos vinte e oito anos de casamento. Esses últimos três foram um milagre. Digo isso porque desde que fui tocada por esse indesejado dom não tive coragem de contar a ninguém a experiência vivida. Passada a excitação inicial, meu constrangimento superou minha curiosidade. No começo eu ouvia baixinho. Vinha nas horas mais inesperadas: Numa sessão de cinema, durante uma transa, enquanto dormíamos. Uma noite cheguei a acordá-lo. “O que é isso, Luis Alberto? E ele assombrado: “O que é isso o que?”. Mas fiquei com pena dele e voltei a dormir. O mais incrível é que nunca fui ciumenta. Não mesmo. Ele até comentava na minha frente sobre as mulheres que achava bonitas. Há muitos anos, acho que desde que tive minhas filhas, Luis Alberto começou a me chamar de fofinha. Mas de um jeito tão carinhoso que eu até gostava. Juro. Quando fez cinqüenta anos estávamos comemorando com a família num restaurante e meu pai viu a Luma de Oliveira na mesa ao lado. Acredita que eu pedi para ela tirar uma foto com o Luis Alberto? Além da fotografia, ainda deu beijinho de parabéns. E eu ali, segura. Mas desde que me tornei “paranormal ”, episódios como esse me parecem cada vez mais distantes . Ultimamente, quando Luis Alberto fala alguma coisa e depois fica em silêncio - como qualquer ser humano, pensando tudo ao contrário do que falou - , eu olho bem no fundo dos olhos dele e penso:”Que safado,hein Luis Alberto”. É um sadismo meu. Mas a sensação de estar sendo invadido em seu território mais secreto começou a atormentá-lo de tal forma que comecei a ser vigiada também. Luis Alberto passou a prestar total atenção em mim como alguém que não dorme mais com medo de ser assassinado. Contraiu essa doença muito comum hoje em dia: síndrome do pânico. Gostaria de dizer ao psiquiatra o verdadeiro problema, mas provavelmente me internariam. O fato é que meu marido foi ficando tão fragilizado que pediu licença no trabalho. Semana passada cheguei mais cedo do escritório e ele me convidou para jantar fora. Sei que odeia minha atual magreza. Vive querendo me engordar de novo. Eu não queria aceitar o convite porque tomei aversão ao apelido de fofinha, mas acabei aceitando. Ficamos em silêncio quase todo o jantar. No passado, quando jantávamos neste restaurante, eu comia despreocupadamente e conversávamos com muita alegria. Enquanto esperávamos a conta olhei bem para o pai de minhas filhas e pensei : Coitado, nunca foi de ter olheiras. Quando ele disparou, para minha surpresa: ”Se você me deixasse em paz. Contra insônia não há dietas.” Agora, quando percebo em restaurantes alguns casais no mais absoluto silêncio, imagino que já estão em outro nível de comunicação.
A MELHOR HORA
por Malu Mader

Hoje começa o horário de verão. Assisto ao pôr do sol na praia do Arpoador. Minha mãe está sentada ao meu lado. Posso ouvir sua respiração mesmo com o barulho das ondas e das pessoas conversando nas mesas ao lado. Ela está muito nervosa. Acendo um cigarro. Nossa falta de assunto é tanta que talvez tenhamos muito em comum. Se pudesse suportar isso por mais quinze minutos talvez descobríssemos uma afinidade ancestral. Achei que no dia em que a encontrasse reconheceria nela algum traço meu, mas não. Melhor chamar o garçom e pedir uma caipirinha para acompanhar meu cigarro. Entendo tudo o que ela teria para me dizer, mas entender não basta. E os nervos? E o coração? Gostaria de lhe poupar o esforço de tentar me explicar uma vida inteira distante. Não vai adiantar. Ela parece decidida. Amanhã eu me caso. Talvez seja isso. Assim que nasci, depois de me entregar para meu pai, ela sofreu um acidente que a deixou paralítica. Encarou o fato como um castigo por ter me abandonado. Sua paralisia sempre foi a certeza da punição divina e mesmo assim ama a Deus acima de tudo. Difícil viver assim. Acreditando que estamos sendo vigiados e punidos de acordo com o que fazemos de bom ou ruim. Nunca havíamos nos visto. Quando ligou para marcar este encontro disse sempre ter esperado a melhor hora. E que foi assistindo a cena de uma novela, em que uma menina paralítica se despede da mãe antes do casamento, que ela teve a inspiração para me procurar. Incrível. Por causa de uma novela, eu que nunca havia visto nem ouvido minha mãe, estou aqui aproveitando este momento zen. Preciso fumar. O cigarro é minha meditação. Eu já teria morrido mil vezes não fosse o cigarro a me lembrar que preciso respirar. Apesar de jovem sei o que é bom para mim. Por trás das lentes grossas dos óculos bifocais ela chora e por isso aquela respiração chata parou. Agora que conseguiu chorar temos algo em comum. O mesmo silêncio. O céu escureceu rápido. Não, não foi o pôr do sol. Monstruosas nuvens surgem atrás dos prédios. Tenho a impressão de que os raios vem em nossa direção. Talvez seja o álcool. Um saxofonista acaba de chegar e começa a tocar. Devo estar viajando. É que antes de sair de casa abri uma agenda e no dia de hoje estava escrito: um guerreiro da luz não tem certezas, mas um caminho a seguir, e eu já tinha tomado uma cerveja e fumado um baseado no carro. Se eu pedir mais uma caipirinha sou capaz de me inspirar também e dizer a ela que Deus jamais a puniria, que viver é mesmo muito perigoso, que ele apenas criaria o que é bom. E eu nem sei se acredito nisso. Para mim, até então, Deus era uma mãe ausente.